sábado, 20 de novembro de 2010

Felicidade, é possível? - parte 3

(Cap. III do trabalho de conclusão do curso de Filosofia - Crítica ao conceito de felicidade do homem contemporâneo) parte - 3/3



 Da decepção à Felicidade


Partindo do princípio de que a decepção é um elemento constitutivo da experiência humana, ou seja, o homem ainda se vê insatisfeito apesar de tudo o que já tem e que poderá ter, a ideia de Aristóteles a respeito dos bens materiais torna-se um norte para o homem contemporâneo. Como consta no primeiro capítulo deste presente trabalho, o Filósofo coloca nos fundamentos da felicidade humana a prática das virtudes. Ele reconhece a dependência que o homem tem dos favores dos bens materiais, da fortuna, das pessoas, mas o que constitui a felicidade são as atividades virtuosas. Ou seja, os excessos, os exageros, que são uma das faces do homem de hoje, bem longe estão da virtude e bem longe estão da felicidade. Lipovetsky denomina o homem de hoje como "Homo consumericus", e, portanto, não mais um simples consumidor em busca de garantir sua sobrevivência, mas sim, um hiperconsumidor ávido por satisfazer seus desejos mais egoístas. Sendo assim, essa busca da felicidade contrapõe-se ao equilíbrio entre razão e paixão, corpo e alma.
"Todo querer nasce de uma necessidade, portanto, de uma carência, logo, de um sofrimento. A satisfação põe um fim ao sofrimento; todavia, contra cada desejo satisfeito permanecem pelo menos dez que não o são. Ademais, a nossa cobiça dura muito, as nossas exigências não conhecem limites; a satisfação, ao contrário, é breve e módica. Mesmo a satisfação final é apenas aparente: o desejo satisfeito logo dá lugar a um novo: aquele é um erro conhecido, este um erro ainda desconhecido. Objeto algum alcançado pelo querer pode fornecer uma satisfação duradoura, sem fim, mas ela se assemelha sempre apenas a uma esmola atirada ao mendigo, que torna sua vida menos miserável hoje, para prolongar seu tormento amanhã". (Arthur Shopenhauer - O Mundo como Vontade e como Representação)

Nessa realidade da vontade que nunca poderá ser satisfeita, como entender a felicidade? Pensar a felicidade como uma atitude racional de equilíbrio das ações e numa tomada de consciência das satisfações que são apenas momentâneas, poderá contribuir para a ideia de que a mesma pode ser encontrada nesse processo, baseado pela virtude e por esse reconhecimento dos limites que se tem. O homem, que hoje se coloca no centro como o seu próprio "deus", mostra estar tomando um lugar que não o pertence. Voltar para a condição de criatura, de dependente, de necessitado poderá ser uma resposta para essa discrepância entre sua objetividade e sua subjetividade. Sto. Agostinho tem toda razão quando deposita em Deus toda as chances do homem ser feliz. Ele é consciente da limitação humana e sabe que só Deus, por ser Ele ilimitado e imutável, satisfará esse mesmo homem em suas necessidades.
Não há dúvida de que, apesar dos excessos, dos vícios ao invés da virtude, principalmente no que tange o bem estar, o homem tem como fim de suas ações a felicidade. "É em nome da felicidade que se desenvolve a sociedade de hiperconsumo", como afirma Lipovetsky. Ao redor de si, esse mesmo homem depara-se constantemente com grandes quantidades de guias e métodos que trazem consigo uma promessa de vida melhor. A televisão e os jornais trazem conselhos de saúde e de forma. É crescente o número de psicólogos que trabalham na ajuda às pessoas em dificuldades. Isso mostra que o homem trabalha em função de sua felicidade e tende a continuar assim, pois há dentro de si a exigência de ser feliz, mesmo não sabendo perfeitamente como isso acontecerá.
A felicidade humana, tornando-se o ideal supremo, traz consigo uma postura de desprezo à tradição da filosofia clássica e à religião. O homem contemporâneo, assim influenciado, vê-se, à medida que avança por este caminho, esvaziando-se enquanto indivíduo, enquanto ser. Por isso, a felicidade permanece, de fato, em sua história, em seu passado e cada vez mais longe de seu futuro. Essa é a ideia de que a felicidade somente é encontrada numa atitude nostálgica. Ou seja, o homem de hoje, por não viver segundo o equilíbrio entre razão e instinto, acaba por não aproveitar melhor seu tempo presente e o recordar-se de fatos passados traz a frustração de uma oportunidade de felicidade que passou e que não volta mais.
A ideia aristotélica é fundamental para uma vida feliz, mesmo levando em consideração a limitação humana. As virtudes intelectuais, quando integradas às virtudes morais, colocam o indivíduo no centro, no eixo de sua existência. Dessa forma, o homem se integra ao universo, já não se coloca mais como seu centro. Sto. Agostinho também enfatiza o papel da virtude como fator de equilíbrio no ser humano. Mas ele completa o que faltou em Aristóteles. Agostinho diz que a felicidade é Deus e cabe ao homem possuí-lo para ser feliz. Portanto, as ideias de Aristóteles e de Sto. Agostinho trazem consigo a esperança da vida feliz para o homem de hoje. Ambas retiram o homem de qualquer ilusão e o colocam à busca, ao esforço. Ambas retiram o homem do egoísmo, pois, não haverá felicidade sem virtude. Sem justiça, sem temperança, sem moderação, sem caridade, é impossível pensar a felicidade. E, segundo Agostinho, sem essas mesmas virtudes, é impossível chegar a Deus.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Felicidade, é possível? parte 2

(Cap. III do trabalho de conclusão do curso de Filosofia - Crítica ao conceito de felicidade do homem contemporâneo) parte - 2/3


A Felicidade Materialista


Em seu livro A Felicidade Paradoxal, o filósofo Gilles Lipovetsky vai dizer: "A felicidade não é, evidentemente, uma 'ideia nova'. Nova é a ideia de ter associado à conquista da felicidade as 'facilidades da vida', ao Progresso, à melhoria da existência material. No século XVII, o cartesianismo já lança as bases intelectuais da civilização prometeica da felicidade, anunciando o progresso ao infinito para e pelo gênero humano".
Na ideia aristotélica, como consta no primeiro capítulo deste presente trabalho, a felicidade está diretamente ligada com a prática das virtudes. Aqui, Aristóteles já se opõe diretamente a essa ideia de felicidade trazida pelo progresso civilizatório. A chamada sociedade de consumo influenciada por este progresso passa, então, a entender que crescimento econômico, que ocasiona prazer, bem estar, acúmulo de bens, caracteriza o que é a felicidade. A ideia, segundo Gilles Lipovetski, é que "as indústrias e os serviços agora empregam lógicas de opção, estratégias de personalização dos produtos e dos preços [...] mas todas essas mudanças não fazem mais que ampliar a mercantilização dos modos de vida, alimentar um pouco mais o frenesi das necessidades, avançar um grau na lógica do ‘sempre mais, sempre novo’ [...]" A virtude, como ensinou Aristóteles, perde seu sentido.
O homem de hoje está mais preocupado em satisfazer suas emoções imediatas do que demonstrar sua condição social. Elevando os ideais de felicidade privada, "os lazeres, as publicidades e as mídias favoreceram condutas de consumo menos sujeitas ao primado do julgamento do outro. Viver melhor, gozar os prazeres da vida, não se privar, dispor do ‘supérfluo’ aparecem cada vez mais como comportamentos legítimos, finalidades em si." Desse modo, percebe-se um incentivo a atitudes cada vez mais individualizadas. Nessa avidez pelo supérfluo, o homem corre em direção à superficialidade da realidade. Apega-se às "facilidades da vida", fugindo de si mesmo e sem perceber passa a andar sem sair do lugar. Ou seja, "quanto mais se consome, mais se quer consumir".
Sto. Agostinho, como consta no segundo capítulo deste presente trabalho, concluiu que não basta aos que já possuem ter o ambicionado para serem felizes. E, mais à frente, ele diz que o homem jamais esgotará todo o seu desejo de possuir e tampouco poderá manter aquilo que é material porque, sendo material, pressupõe-se a sua finitude. Neste sentido, o homem de hoje mostra-se avesso à prática de certas virtudes, principalmente nas que tocam diretamente seu bem estar. O muito ter, o muito comer, o muito fazer tem feito com que o homem acelere cada vez mais o ritmo de sua vida e isso, consequentemente, tem sido a fonte de muitos males. O querer e o agir humanamente são a raiz da virtude. Mas, para o homem de hoje, só uma parte de sua humanidade é considerada. Sto. Agostinho afirma que basear a felicidade numa vida vivida somente no prazer, no bem estar, não é ser feliz. É necessário que haja uma tomada de consciência, pois nem tudo na vida é prazer.
Assim, o filósofo Arthur Schopenhauer considera que a essência de tudo o que existe, inclusive o homem, é a Vontade. Ele mesmo diz: "Meu corpo e minha vontade são uma coisa só; ou, o que como representação intuitiva denomino meu corpo, por outro lado, denomino minha vontade, visto que estou consciente dele de maneira completamente diferente, não comparável com nenhuma outra; ou meu corpo é a OBJETIVIDADE da minha vontade, // ou, abstraindo-se o fato de que meu corpo é minha representação, ele é apenas minha vontade etc".
Seguindo a ideia de Shopenhauer, a vontade não se manifesta como um princípio puramente racional. Ao contrário, ela é o impulso que leva todo ente, desde o inorgânico até o homem a desejar sua preservação. Ele mesmo diz: "reconhecerá a mesma vontade como essência mais íntima não apenas dos fenômenos inteiramente semelhantes ao seu, ou seja, homens e animais, porém, a reflexão continuada o levará a reconhecer que também a força que vegeta e palpita na planta, sim, a força que forma o cristal etc. [...]" A consciência humana, para Shopenhauer seria uma mera superfície que confere causalidade a seus atos e ao próprio mundo, a irracionalidade inerente à vontade. Portanto, a vontade é compreendida como a causa de todo sofrimento, uma vez que lança os entes numa cadeia perpétua de aspirações sem fim, provocando a dor de jamais poder completar-se.
"Eterno vir-a-ser, fluxo sem fim, pertencem à manifestação da essência da vontade. O mesmo também se mostra, por fim, nas aspirações e nos desejos humanos, cujo preenchimento sempre nos acena como o fim último do querer; porém, assim que são alcançados, não mais se parecem os mesmos e, portanto, logo são esquecidos, tornam-se caducos e, propriamente dizendo, embora não se admita, são sempre postos de lado como ilusões desfeitas".
A partir do que já pensava Sto. Agostinho e juntamente com a ideia de Shopenhauer, a decepção apresenta-se como elemento constitutivo da experiência humana. Percebe-se que está na natureza do homem ser insatisfeito. Logo, "todo conjunto de bens mercantis se mostra incapaz de trazer o gênero de satisfações que se espera deles, as experiências de consumo estão na origem de muitas decepções". Alguns bens considerados não duráveis, como por exemplo, o comer e o beber, são causas de prazeres intensos, renováveis e, sobretudo, resistentes à decepção. Em contrapartida, muitos bens duráveis, como, por exemplo, aquecimento automático, automóvel e refrigerador não são resistentes à decepção por ocasionarem prazeres somente no momento da aquisição ou do primeiro uso. Outras decepções são evidentes, devido a expectativas não superadas: saúde, educação, lazeres, política, a própria profissão, etc.