Autonomia da Razão x Conquista da Felicidade
A felicidade na contemporaneidade caminha na diversidade de meios, na busca e posse de bens temporais e passageiros, caracterizando o homem pelo consumismo, materialismo, imediatismo, hedonismo, utilitarismo e egoísmo. O homem de hoje, em sua busca pela felicidade, distancia-se cada vez mais daquilo que Aristóteles e Sto. Agostinho ensinaram a respeito. Os dois grandes pensadores da Filosofia Clássica já não exercem tanta influência sobre o homem de hoje, que eleva a altos patamares a corporeidade, a exterioridade e a artificialidade em suas relações com a realidade. Isso ocasiona toda uma crise de identidade consigo mesmo, com o mundo e com a verdade. Tal diversidade reflete uma falta de conhecimento do que seja a verdadeira e plena felicidade.
Os resultados do processo histórico da modernidade influenciam o homem de hoje diretamente, não só na concepção de felicidade, mas também na ideia de Deus e de mundo. Galileu, Francis Bacon e Descartes são considerados os pais do Projeto Moderno. Eles, segundo o filósofo Franklin Leopoldo e Silva, “propuseram meios racionais de emancipação do homem em relação às forças da natureza e aos dogmas estabelecidos por instâncias de autoridade alheias ao domínio da pura razão”. Com postura de recusa ao dogma da criação decaída e a sujeição do mundo visível aos mandamentos do invisível, os modernos inventaram a “religião do progresso, a ideia de uma marcha indefinida rumo à felicidade a efetuar-se através do domínio técnico do mundo”. As maravilhas do mundo vindouro, agora, são prometidas nesta terra à inteligência e à ação inventiva do homem.
Franklin Leopoldo e Silva, por meio do texto intitulado de Conhecimento e Razão Instrumental, quer considerar as contradições presentes no desenvolvimento da Revolução Iluminista. Ele continua dizendo: conhecer emancipa porque o conhecimento traz consigo o domínio da realidade. Da submissão ao senhorio sobre a natureza é, pois a trajetória que caracteriza a passagem do arcaico ao moderno, do primado do mundo exterior à primazia de um sujeito livre que se situa perante o mundo na posição de um juiz que é ao mesmo tempo um senhor. As duas atribuições vinculam-se ao saber cujo único instrumento é a razão. Afirma-se assim um poder indefinido de exploração intelectual da realidade que tem como consequência necessária o domínio técnico da natureza.
É neste contexto que o homem hodierno se encontra: conquistas tecnológicas derivadas do progresso da ciência, que é caracterizada por essa dominação do engenho humano sobre a natureza. O Projeto Moderno é fazer com que o ser humano passe da submissão ao senhorio da realidade. Poder e conhecimento são sinônimos. O que os homens deveriam aprender da natureza agora é como empregá-la, como usá-la. Desse modo, portanto, a finalidade proposta pela chamada Revolução Científica era também a de coadunar todo esse progresso científico com a felicidade. Ou seja, por detrás desse pensamento, havia o pressuposto de que o conhecimento colocado dessa forma de domínio da natureza resultaria num estado de felicidade para todos. Na análise de Eduardo Giannetti, “o grande divisor de águas no tocante à evolução da noção de progresso civilizatório e do seu impacto sobre a felicidade humana foi o iluminismo europeu do século XVIII – ‘a era da razão’ baseada na fé sobre o poder da própria razão”.
Entre os séculos XVII e XX, nota-se um grande crescimento tecnológico devido a este feliz casamento entre o saber e a técnica. Os benefícios trazidos por este processo civilizatório são tangíveis e passíveis de mensuração. Em termos de longevidade, constata-se um conjunto expressivo de indicadores biomédicos, sociais e econômicos. Grandes ganhos objetivos também no campo da saúde, escolarização, acesso a bens de consumo e tantos outros feitos derivados do progresso científico e do aumento da produtividade. Mas no tocante à felicidade, quais têm sido os efeitos de todo esse progresso? O anseio do ser humano, após essa virada iluminista, pôde concretizar seu sonho de felicidade e, em outros termos, tudo isso trouxe a sua realização?
O objetivo era a melhoria da vida humana por meio da razão. Logo, o conhecimento atrelado ao domínio da natureza tem como fim a própria razão. Ou seja, esse conhecer para dominar passa a dominar o próprio homem porque o homem é também parte da natureza. Reduzir tudo à razão faz com que tudo seja tratado como coisa. Tudo passa a ser medido, mensurado por um único método e o que não se enquadra a essa exigência é considerado inexistente, por carecer de fatos empíricos que o comprovem. Eduardo Giannetti afirma que o “erro capital do projeto iluminista foi dar uma ênfase desmesurada à transformação e à conquista do mundo objetivo em detrimento de uma atenção maior à questão dos desejos e ao lado contemplativo da realização humana”. Ou seja, apenas parte da realidade foi considerada. O homem avançou por um lado, mas, subjetivamente, ficou estagnado, esquecido e agora entristecido.
É fato historicamente comprovado que os avanços científicos, que permitiram ao homem descobrir a energia atômica, paralelamente, também permitiram a descoberta de bombas que resultariam na morte de milhares de pessoas. Portanto, a ideia de progresso mostrou a inviabilidade de se combinar o avanço científico com o aprimoramento da vida. É, sim, uma faca de dois gumes e a felicidade ainda permaneceu como os “amanhãs que cantam”.