sábado, 30 de outubro de 2010

Felicidade, é possível?

(Cap. III do trabalho de conclusão do curso de Filosofia - Crítica ao conceito de felicidade do homem contemporâneo) parte - 1/3


Autonomia da Razão x Conquista da Felicidade


A felicidade na contemporaneidade caminha na diversidade de meios, na busca e posse de bens temporais e passageiros, caracterizando o homem pelo consumismo, materialismo, imediatismo, hedonismo, utilitarismo e egoísmo. O homem de hoje, em sua busca pela felicidade, distancia-se cada vez mais daquilo que Aristóteles e Sto. Agostinho ensinaram a respeito. Os dois grandes pensadores da Filosofia Clássica já não exercem tanta influência sobre o homem de hoje, que eleva a altos patamares a corporeidade, a exterioridade e a artificialidade em suas relações com a realidade. Isso ocasiona toda uma crise de identidade consigo mesmo, com o mundo e com a verdade. Tal diversidade reflete uma falta de conhecimento do que seja a verdadeira e plena felicidade.
Os resultados do processo histórico da modernidade influenciam o homem de hoje diretamente, não só na concepção de felicidade, mas também na ideia de Deus e de mundo. Galileu, Francis Bacon e Descartes são considerados os pais do Projeto Moderno. Eles, segundo o filósofo Franklin Leopoldo e Silva, “propuseram meios racionais de emancipação do homem em relação às forças da natureza e aos dogmas estabelecidos por instâncias de autoridade alheias ao domínio da pura razão”. Com postura de recusa ao dogma da criação decaída e a sujeição do mundo visível aos mandamentos do invisível, os modernos inventaram a “religião do progresso, a ideia de uma marcha indefinida rumo à felicidade a efetuar-se através do domínio técnico do mundo”. As maravilhas do mundo vindouro, agora, são prometidas nesta terra à inteligência e à ação inventiva do homem.
Franklin Leopoldo e Silva, por meio do texto intitulado de Conhecimento e Razão Instrumental, quer considerar as contradições presentes no desenvolvimento da Revolução Iluminista. Ele continua dizendo: conhecer emancipa porque o conhecimento traz consigo o domínio da realidade. Da submissão ao senhorio sobre a natureza é, pois a trajetória que caracteriza a passagem do arcaico ao moderno, do primado do mundo exterior à primazia de um sujeito livre que se situa perante o mundo na posição de um juiz que é ao mesmo tempo um senhor. As duas atribuições vinculam-se ao saber cujo único instrumento é a razão. Afirma-se assim um poder indefinido de exploração intelectual da realidade que tem como consequência necessária o domínio técnico da natureza.

É neste contexto que o homem hodierno se encontra: conquistas tecnológicas derivadas do progresso da ciência, que é caracterizada por essa dominação do engenho humano sobre a natureza. O Projeto Moderno é fazer com que o ser humano passe da submissão ao senhorio da realidade. Poder e conhecimento são sinônimos. O que os homens deveriam aprender da natureza agora é como empregá-la, como usá-la. Desse modo, portanto, a finalidade proposta pela chamada Revolução Científica era também a de coadunar todo esse progresso científico com a felicidade. Ou seja, por detrás desse pensamento, havia o pressuposto de que o conhecimento colocado dessa forma de domínio da natureza resultaria num estado de felicidade para todos. Na análise de Eduardo Giannetti, “o grande divisor de águas no tocante à evolução da noção de progresso civilizatório e do seu impacto sobre a felicidade humana foi o iluminismo europeu do século XVIII – ‘a era da razão’ baseada na fé sobre o poder da própria razão”.
Entre os séculos XVII e XX, nota-se um grande crescimento tecnológico devido a este feliz casamento entre o saber e a técnica. Os benefícios trazidos por este processo civilizatório são tangíveis e passíveis de mensuração. Em termos de longevidade, constata-se um conjunto expressivo de indicadores biomédicos, sociais e econômicos. Grandes ganhos objetivos também no campo da saúde, escolarização, acesso a bens de consumo e tantos outros feitos derivados do progresso científico e do aumento da produtividade. Mas no tocante à felicidade, quais têm sido os efeitos de todo esse progresso? O anseio do ser humano, após essa virada iluminista, pôde concretizar seu sonho de felicidade e, em outros termos, tudo isso trouxe a sua realização?
O objetivo era a melhoria da vida humana por meio da razão. Logo, o conhecimento atrelado ao domínio da natureza tem como fim a própria razão. Ou seja, esse conhecer para dominar passa a dominar o próprio homem porque o homem é também parte da natureza. Reduzir tudo à razão faz com que tudo seja tratado como coisa. Tudo passa a ser medido, mensurado por um único método e o que não se enquadra a essa exigência é considerado inexistente, por carecer de fatos empíricos que o comprovem. Eduardo Giannetti afirma que o “erro capital do projeto iluminista foi dar uma ênfase desmesurada à transformação e à conquista do mundo objetivo em detrimento de uma atenção maior à questão dos desejos e ao lado contemplativo da realização humana”. Ou seja, apenas parte da realidade foi considerada. O homem avançou por um lado, mas, subjetivamente, ficou estagnado, esquecido e agora entristecido.
É fato historicamente comprovado que os avanços científicos, que permitiram ao homem descobrir a energia atômica, paralelamente, também permitiram a descoberta de bombas que resultariam na morte de milhares de pessoas. Portanto, a ideia de progresso mostrou a inviabilidade de se combinar o avanço científico com o aprimoramento da vida. É, sim, uma faca de dois gumes e a felicidade ainda permaneceu como os “amanhãs que cantam”.



quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Quando os dias demoravam a passar...

Lembro-me de quando eu era criança. Os dias demoravam a passar. As pipas, o jogo de futebol na rua ou no quintal do prédio, o pique-esconde e o “mega-drive” na casa dos amigos... Eram dias assim e esses eram meus maiores compromissos. O pai e a mãe, mesmo com a dura realidade de ter que conciliar trabalho e família, estavam sempre ali, mesmo quando estavam dormindo ou chateados e cansados. Era bom tê-los os dois ao mesmo tempo em casa. Isso era um pouco difícil, mas acontecia e desses dias dificilmente me esquecerei.
Como muitas crianças, eu não cresci tendo tudo o que quisesse. Lembro-me de que desde cedo comecei a aprender a ter que separar desejo de direitos. Não tive um pai e uma mãe que sempre fizessem os meus gostos, e por isso, hoje eu os agradeço. Mas, quando criança, não sabia muito bem como entender o “não”. Hoje, já um pouco mais velho (mas nem tanto!), ainda continuo lutando para não fazer dos desejos que tenho um direito. É uma linha tênue, um caminho estreito, reconheço. Entendo assim a vida: nem tudo posso ter, fazer e viver! Nem mesmo meus próprios sentimentos consigo controlar. Ora me sinto de um jeito, ora de outro e acabo concluindo que até do meu corpo, de vez em quando, levo uns “esbarrões”! Essa é uma experiência verdadeiramente humana, onde preciso reconhecer que não posso dominar aquele que precisa ser reconhecido por mim apenas como um amigo. Diminuir a velocidade sobre mim mesmo, sobre o que acho que sou ou deveria ser, sobre o que deveria estar sentindo e não consigo sentir em determinados momentos, sobre o que deveria estar fazendo e não consigo fazer ou talvez não seja capaz de fazer mesmo, pode ser a causa de dias mais tranquilos.



Na época das pipas, do futebol, do vídeo game (não posso esquecer do bafo: é tentar virar figurinhas com o impacto da mão!) , eu desejava ardentemente por esse dia aqui. Por quando eu estivesse com essa idade que estou hoje, já adulto, com essa independência na vida etc. E hoje, estou aqui e, apesar de tudo, vou bem, obrigado. Mas confesso: aquela época me dá saudades principalmente por uma coisa. Eu não tinha pressa. Eu não tinha preocupações. Não me preocupava se eu ia acertar na vida ou errar. O sentido de derrota era outro. Era apenas perder uma partida, perder uma pipa, perder figurinhas etc. Os dias passaram, eu cresci e essas lembranças só farão o bem que podem se eu deixá-las serem apenas lembranças. A vida tem suas exigências e quero sempre me permitir, ao menos, o desejo por dias menos acelerados, menos exigentes. Acho que deixar de desejar isso é impossível e acho que isso é um dilema. O desejo mais uma vez se contrapõe ao direito. Não considero que isso seja imaturidade ou medo de enfrentar desafios. Pelo contrário. Voltar ao tempo em que as derrotas não tinham o peso que hoje têm é poder ter o direito de viver na demora de um dia que não se mostra com pressa de findar. Isso pode não acontecer. Mas eu não quero deixar de me lembrar desses dias. Faz parte de mim, pois a vida não é somente feita de exigências, de responsabilidades a serem cumpridas. Ainda existem pipas, futebol, figurinhas, mesmo que seja somente nas lembranças.