sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Amigos: junção e não fusão de dilemas


Não concordo com a ideia de que os amigos são coisas que faltam em mim. Essa palavra "coisa", que quero usá-la para explicar o que os amigos não são, a princípio não me agradou. Mas, percebi que tem tudo a ver com o que quero falar. Então, explico. O amigo não é a voz que não tenho, naquelas situações em que preciso cantar, como para falar, criticar e opinar. Ele também não é meu servo, meu escravo, que tem que estar 24 horas disponível, atento às minhas necessidades e carências. O amigo sabe que sou só, mesmo sabendo que nossa amizade proporciona intimidade e profundidade. Ele é diferente de mim. Talvez, eu goste de carne bovina e ele não. Ou, talvez, ele goste de vinagre com cebola crua e eu deteste e, ainda, talvez eu goste de vinho e ele não. Posso começar a questionar essa amizade se, por acaso, eu passar a mudar meus gostos, tipo, achando que isso vai agradar meu amigo... Na verdade, se isso acontecer, é sinal de que estou me deixando influenciar por quem chegou na minha vida com a proposta de me amar do jeito que eu sou, mesmo eu gostando do que eu gosto e mesmo não lhe agradando. Mas, têm coisas que vamos passar a desfrutar só após a chegada do amigo sem deixar de ser quem somos. Talvez um suco de limão bem azedinho etc.  
O amigo não roubará para si as nossas dificuldades, o nosso sofrer. Essa atitude heróica pode ser linda, louvável e digna de aplausos. Mas, ela pode nos estragar. Nossas dores são matéria com potencial para nos fazer crescer. Cabe à nossa decisão, é claro. O amigo  saberá que sua presença, e somente a sua presença nessa hora, é o mais importante. E, mais cedo ou mais tarde, ele dirá: "preciso ir embora". Mesmo sendo quem ele é, precisará ir, pois tem o seu lugar e sua hora. Isso pode parecer um tanto insensível, mas acho que os amigos se unem e não se confundem entre si. Nesse mundo das relações cada vez mais superficiais, presenças são o que não faltam. "Amigos" são utilizáveis (e por que não descartáveis?) aos montes e quase não se tem tempo para si.  A solidão é banida. Logo, reificar ou coisificar pessoas significa esvaziamento e alienação de si. Portanto, não crescimento.
Nos momentos de dificuldades, Cireneu, aquele que ajudou o Senhor na subida até o Calvário, pode ser tomado como um bom exemplo. A Cruz não era dele. Ele ajudou Jesus até certo ponto. Dali pra frente era com Jesus. Isso é também uma forma de respeito. A dor, o calvário só poderão ser sofridos pelo amigo, também, até certo ponto. O que fica nesse momento é a crença de que ele conseguirá. Aqui, brota o sentimento de impotência, por ver o amado sofrer e não poder fazer nada.
Os amigos se olham e se percebem. Não estarão fundidos um no outro. Do contrário, não seria amizade. Há uma junção, dois caminhantes rumo aos desafios da vida. Claro, ambos terão no coração o desejo de, se preciso, dar a vida um pelo outro, para que ele viva a sua vida, pois a verdadeira amizade é sempre livre de todo desejo de possuir, de centralizar em si o controle das decisões. A coisificação do outro é sempre uma atitude mais fácil a ser tomada. Mas, o meu amigo não serve pra compensar o que falta em mim. E eu também não suprirei suas ausências. Eu, com meus dilemas, ele com os dilemas dele, nos tornamos um somente quando respeitamos os limites da solidão que ambos temos.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Ainda continuo com medo

A imaturidade é fato. O choro, o grito, o desespero acontecem quando a solidão e a dor se aproximam. Muitos de nós (eu com certeza!) ainda temem o desprezo, a indiferença e o não reconhecimento dos outros. O anseio por presenças, seja de coisas ou pessoas, que são tidos como lugares de segurança e conforto é crescente. Cresce na medida em que o achar-se pronto, homem feito e feliz consiste em sempre estar amparado, como uma criança que só pensa em si e sempre se esquece dos outros. A tal fase do altruísmo é muito falada, grandes discursos sobre... Discursos vazios de sentido. Linguagem e realidade, duas coisas que não se conhecem. Mas, o que a experiência mostra é a criança que só quer brincar, mas que não sabe brincar, a não ser sozinha. Estamos em tempos de forte egoísmo! Alguns alimentos, não necessariamente aquilo que comemos e bebemos (o que lemos, o que vemos e ouvimos), que são essenciais para o desenvolvimento, servem mais como entorpecentes do que como sustento, forjando realidades à parte. Grandes mundos de fantasias, de ilusões onde tudo está bem e não há problemas que precisam ser resolvidos. O senso crítico não existe, pois tem sempre alguém a gritar por nós, a questionar, a reivindicar nossos direitos, a lutar por justiça.
É de se compreender por que muitos ainda não querem crescer. A realidade é dura. A queda, os erros, os fracassos compõem o mundo das nossas possibilidades ou já estão por aqui. A solidão é fato. Está em nós. Por mais que tenhamos fé, por mais que sejamos filhos queridos de Deus e por isso somos 24 horas do nosso dia olhados por Ele, ainda assim há razões para temermos, mesmo que sejam razões as quais não sabemos de onde nem por que vêm. Nossa fé e nossa tomada de posse do que somos em Deus exige vigilância constante. Isso até pode ter relação com a nossa contínua necessidade de saciar a fome, a sede, os desejos etc. Encarar a realidade dá frio na barriga, tendo fé ou não. Maturidade está para profundidade. Em outras palavras, maturidade está para verdadeiro comprometimento com a vida, sem querer ficar só com os dias de alegria e de sol em detrimento dos dias de tristeza e chuva. 
A busca por lugares que não existem parece ser algo que está entranhado em nossas estruturas. Nessa fase do ficar só com os dias de sol, a fase do homem feito e feliz que já citei acima, as utopias ganham vida. Não há medo. Não há erros. Se existem medo e erro não é comigo. É sempre com o outro...  
Não existem opções de lugares para se viver. Só há um lugar, cheio de luz e sombra. Acredito que não existam outras vidas a se viver para, talvez, justificar a vida que passou. A vida é essa que estamos vivendo, e o estar com medo, temendo algo, isso é sinal de humanidade. Quem luta quer vencer, mas também teme a derrota.       
Condeno a imaturidade assumida. Apoio a imaturidade reconhecida, pois este é o primeiro passo para que se possa viver sem vendas nos olhos, chorando e sorrindo, com afetos de homens e mulheres que querem crescer. 

As dúvidas, os questionamentos e o achar-se não pronto são grandes aliados no processo de crescimento. Por isso, não os evite. Mas cuidado, o medo é consequente!  

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A saga de ser Deus

Minha saga de ser Deus ainda continua. Vivo ignorando minha natureza humana quando tento tudo controlar, tudo querer, tudo fazer. Isso, com certeza, é o meu maior pecado. Sinto dentro de mim o impulso de controlar o tempo, de dizer quando pode chover ou quando pode fazer sol. As retribuições, o reconhecimento pelo esforço feito e os elogios são sempre esperados por mim. Ainda continuo desejando os lugares de honra, os aplausos. Temo a solidão e o fracasso. O belo discurso de que o que faço é sem querer nada em troca, ainda é mais teoria do que prática. E reconhecer isso, ainda é meu grande desafio. Almejo uma perfeição que não me cabe. Vivo tentando fazer com que as interpretações dos outros sobre mim e sobre as coisas sejam sempre da forma que eu quero. Por isso, o fracasso se torna a paga por essa pretensão desmedida em assumir um lugar que não me pertence. O anseio por uma perfeição desumana não me humaniza. Redundante conclusão, eu sei, mas é a triste realidade de um homem e seus dilemas. Acredito que a causa desse meu anseio de ser mais do que posso ser está na não aceitação da minha finitude. Ainda não aceito perder, padecer, sofrer e morrer. 


Neste momento em que tento escrever sobre meu desejo de perfeição, entre um biscoito e outro, tenho a preocupação de escrever um texto legal. A hipótese de fracassar me assusta. Estou, agora, a procurar as palavras, pois as mesmas me fogem. Estou temendo não conseguir dar sentido a isto que quero escrever mas confesso também não estar preocupado com rimas, ordem e quantidade. Claro, nem sempre é assim! Assumir o papel do "está tudo bem, se melhorar estraga, é assim mesmo", é sempre minha grande tentação. Ocultar as fraquezas, neste atual cenário em que vivo, parece uma prática quase que absoluta.
O desejo muitas vezes desenfreado de alegria e festa me faz querer que a vida seja reduzida só a este enredo. Luzes, cores, danças, perfumes... Essa minha saga de ser Deus é muito medíocre mesmo! Escolher parte da realidade em detrimento da outra que é sempre fonte de renovação, de avaliação e amadurecimento só pode ser atitude de um ser humano de posse do que não lhe pertence. Por isso, concordo plenamente com a ideia de que o que me humaniza é aquilo que me faz experimentar o que é próprio dessa mesma humanidade. Seriam, então, as ideias? Seriam, então, os sonhos utópicos? As vitrines? As cores? Os sons? Definitivamente não. As ideias são importantes, como também os sonhos e os lugares de divertimento. Mas, uma experiência que sempre me lembra dos meus limites é a do fracasso. Se ainda continuo a querer tudo controlar, os dias escuros, os dias maus, me devolvem a mim mesmo. Eles me fazem querer mudar de tema, talvez pensar em escrever sobre a saga de ser homem, deixando Deus ser quem ele é, sem reduzi-lo a mim, sem querer ser o que jamais eu poderia ser.

sábado, 20 de novembro de 2010

Felicidade, é possível? - parte 3

(Cap. III do trabalho de conclusão do curso de Filosofia - Crítica ao conceito de felicidade do homem contemporâneo) parte - 3/3



 Da decepção à Felicidade


Partindo do princípio de que a decepção é um elemento constitutivo da experiência humana, ou seja, o homem ainda se vê insatisfeito apesar de tudo o que já tem e que poderá ter, a ideia de Aristóteles a respeito dos bens materiais torna-se um norte para o homem contemporâneo. Como consta no primeiro capítulo deste presente trabalho, o Filósofo coloca nos fundamentos da felicidade humana a prática das virtudes. Ele reconhece a dependência que o homem tem dos favores dos bens materiais, da fortuna, das pessoas, mas o que constitui a felicidade são as atividades virtuosas. Ou seja, os excessos, os exageros, que são uma das faces do homem de hoje, bem longe estão da virtude e bem longe estão da felicidade. Lipovetsky denomina o homem de hoje como "Homo consumericus", e, portanto, não mais um simples consumidor em busca de garantir sua sobrevivência, mas sim, um hiperconsumidor ávido por satisfazer seus desejos mais egoístas. Sendo assim, essa busca da felicidade contrapõe-se ao equilíbrio entre razão e paixão, corpo e alma.
"Todo querer nasce de uma necessidade, portanto, de uma carência, logo, de um sofrimento. A satisfação põe um fim ao sofrimento; todavia, contra cada desejo satisfeito permanecem pelo menos dez que não o são. Ademais, a nossa cobiça dura muito, as nossas exigências não conhecem limites; a satisfação, ao contrário, é breve e módica. Mesmo a satisfação final é apenas aparente: o desejo satisfeito logo dá lugar a um novo: aquele é um erro conhecido, este um erro ainda desconhecido. Objeto algum alcançado pelo querer pode fornecer uma satisfação duradoura, sem fim, mas ela se assemelha sempre apenas a uma esmola atirada ao mendigo, que torna sua vida menos miserável hoje, para prolongar seu tormento amanhã". (Arthur Shopenhauer - O Mundo como Vontade e como Representação)

Nessa realidade da vontade que nunca poderá ser satisfeita, como entender a felicidade? Pensar a felicidade como uma atitude racional de equilíbrio das ações e numa tomada de consciência das satisfações que são apenas momentâneas, poderá contribuir para a ideia de que a mesma pode ser encontrada nesse processo, baseado pela virtude e por esse reconhecimento dos limites que se tem. O homem, que hoje se coloca no centro como o seu próprio "deus", mostra estar tomando um lugar que não o pertence. Voltar para a condição de criatura, de dependente, de necessitado poderá ser uma resposta para essa discrepância entre sua objetividade e sua subjetividade. Sto. Agostinho tem toda razão quando deposita em Deus toda as chances do homem ser feliz. Ele é consciente da limitação humana e sabe que só Deus, por ser Ele ilimitado e imutável, satisfará esse mesmo homem em suas necessidades.
Não há dúvida de que, apesar dos excessos, dos vícios ao invés da virtude, principalmente no que tange o bem estar, o homem tem como fim de suas ações a felicidade. "É em nome da felicidade que se desenvolve a sociedade de hiperconsumo", como afirma Lipovetsky. Ao redor de si, esse mesmo homem depara-se constantemente com grandes quantidades de guias e métodos que trazem consigo uma promessa de vida melhor. A televisão e os jornais trazem conselhos de saúde e de forma. É crescente o número de psicólogos que trabalham na ajuda às pessoas em dificuldades. Isso mostra que o homem trabalha em função de sua felicidade e tende a continuar assim, pois há dentro de si a exigência de ser feliz, mesmo não sabendo perfeitamente como isso acontecerá.
A felicidade humana, tornando-se o ideal supremo, traz consigo uma postura de desprezo à tradição da filosofia clássica e à religião. O homem contemporâneo, assim influenciado, vê-se, à medida que avança por este caminho, esvaziando-se enquanto indivíduo, enquanto ser. Por isso, a felicidade permanece, de fato, em sua história, em seu passado e cada vez mais longe de seu futuro. Essa é a ideia de que a felicidade somente é encontrada numa atitude nostálgica. Ou seja, o homem de hoje, por não viver segundo o equilíbrio entre razão e instinto, acaba por não aproveitar melhor seu tempo presente e o recordar-se de fatos passados traz a frustração de uma oportunidade de felicidade que passou e que não volta mais.
A ideia aristotélica é fundamental para uma vida feliz, mesmo levando em consideração a limitação humana. As virtudes intelectuais, quando integradas às virtudes morais, colocam o indivíduo no centro, no eixo de sua existência. Dessa forma, o homem se integra ao universo, já não se coloca mais como seu centro. Sto. Agostinho também enfatiza o papel da virtude como fator de equilíbrio no ser humano. Mas ele completa o que faltou em Aristóteles. Agostinho diz que a felicidade é Deus e cabe ao homem possuí-lo para ser feliz. Portanto, as ideias de Aristóteles e de Sto. Agostinho trazem consigo a esperança da vida feliz para o homem de hoje. Ambas retiram o homem de qualquer ilusão e o colocam à busca, ao esforço. Ambas retiram o homem do egoísmo, pois, não haverá felicidade sem virtude. Sem justiça, sem temperança, sem moderação, sem caridade, é impossível pensar a felicidade. E, segundo Agostinho, sem essas mesmas virtudes, é impossível chegar a Deus.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Felicidade, é possível? parte 2

(Cap. III do trabalho de conclusão do curso de Filosofia - Crítica ao conceito de felicidade do homem contemporâneo) parte - 2/3


A Felicidade Materialista


Em seu livro A Felicidade Paradoxal, o filósofo Gilles Lipovetsky vai dizer: "A felicidade não é, evidentemente, uma 'ideia nova'. Nova é a ideia de ter associado à conquista da felicidade as 'facilidades da vida', ao Progresso, à melhoria da existência material. No século XVII, o cartesianismo já lança as bases intelectuais da civilização prometeica da felicidade, anunciando o progresso ao infinito para e pelo gênero humano".
Na ideia aristotélica, como consta no primeiro capítulo deste presente trabalho, a felicidade está diretamente ligada com a prática das virtudes. Aqui, Aristóteles já se opõe diretamente a essa ideia de felicidade trazida pelo progresso civilizatório. A chamada sociedade de consumo influenciada por este progresso passa, então, a entender que crescimento econômico, que ocasiona prazer, bem estar, acúmulo de bens, caracteriza o que é a felicidade. A ideia, segundo Gilles Lipovetski, é que "as indústrias e os serviços agora empregam lógicas de opção, estratégias de personalização dos produtos e dos preços [...] mas todas essas mudanças não fazem mais que ampliar a mercantilização dos modos de vida, alimentar um pouco mais o frenesi das necessidades, avançar um grau na lógica do ‘sempre mais, sempre novo’ [...]" A virtude, como ensinou Aristóteles, perde seu sentido.
O homem de hoje está mais preocupado em satisfazer suas emoções imediatas do que demonstrar sua condição social. Elevando os ideais de felicidade privada, "os lazeres, as publicidades e as mídias favoreceram condutas de consumo menos sujeitas ao primado do julgamento do outro. Viver melhor, gozar os prazeres da vida, não se privar, dispor do ‘supérfluo’ aparecem cada vez mais como comportamentos legítimos, finalidades em si." Desse modo, percebe-se um incentivo a atitudes cada vez mais individualizadas. Nessa avidez pelo supérfluo, o homem corre em direção à superficialidade da realidade. Apega-se às "facilidades da vida", fugindo de si mesmo e sem perceber passa a andar sem sair do lugar. Ou seja, "quanto mais se consome, mais se quer consumir".
Sto. Agostinho, como consta no segundo capítulo deste presente trabalho, concluiu que não basta aos que já possuem ter o ambicionado para serem felizes. E, mais à frente, ele diz que o homem jamais esgotará todo o seu desejo de possuir e tampouco poderá manter aquilo que é material porque, sendo material, pressupõe-se a sua finitude. Neste sentido, o homem de hoje mostra-se avesso à prática de certas virtudes, principalmente nas que tocam diretamente seu bem estar. O muito ter, o muito comer, o muito fazer tem feito com que o homem acelere cada vez mais o ritmo de sua vida e isso, consequentemente, tem sido a fonte de muitos males. O querer e o agir humanamente são a raiz da virtude. Mas, para o homem de hoje, só uma parte de sua humanidade é considerada. Sto. Agostinho afirma que basear a felicidade numa vida vivida somente no prazer, no bem estar, não é ser feliz. É necessário que haja uma tomada de consciência, pois nem tudo na vida é prazer.
Assim, o filósofo Arthur Schopenhauer considera que a essência de tudo o que existe, inclusive o homem, é a Vontade. Ele mesmo diz: "Meu corpo e minha vontade são uma coisa só; ou, o que como representação intuitiva denomino meu corpo, por outro lado, denomino minha vontade, visto que estou consciente dele de maneira completamente diferente, não comparável com nenhuma outra; ou meu corpo é a OBJETIVIDADE da minha vontade, // ou, abstraindo-se o fato de que meu corpo é minha representação, ele é apenas minha vontade etc".
Seguindo a ideia de Shopenhauer, a vontade não se manifesta como um princípio puramente racional. Ao contrário, ela é o impulso que leva todo ente, desde o inorgânico até o homem a desejar sua preservação. Ele mesmo diz: "reconhecerá a mesma vontade como essência mais íntima não apenas dos fenômenos inteiramente semelhantes ao seu, ou seja, homens e animais, porém, a reflexão continuada o levará a reconhecer que também a força que vegeta e palpita na planta, sim, a força que forma o cristal etc. [...]" A consciência humana, para Shopenhauer seria uma mera superfície que confere causalidade a seus atos e ao próprio mundo, a irracionalidade inerente à vontade. Portanto, a vontade é compreendida como a causa de todo sofrimento, uma vez que lança os entes numa cadeia perpétua de aspirações sem fim, provocando a dor de jamais poder completar-se.
"Eterno vir-a-ser, fluxo sem fim, pertencem à manifestação da essência da vontade. O mesmo também se mostra, por fim, nas aspirações e nos desejos humanos, cujo preenchimento sempre nos acena como o fim último do querer; porém, assim que são alcançados, não mais se parecem os mesmos e, portanto, logo são esquecidos, tornam-se caducos e, propriamente dizendo, embora não se admita, são sempre postos de lado como ilusões desfeitas".
A partir do que já pensava Sto. Agostinho e juntamente com a ideia de Shopenhauer, a decepção apresenta-se como elemento constitutivo da experiência humana. Percebe-se que está na natureza do homem ser insatisfeito. Logo, "todo conjunto de bens mercantis se mostra incapaz de trazer o gênero de satisfações que se espera deles, as experiências de consumo estão na origem de muitas decepções". Alguns bens considerados não duráveis, como por exemplo, o comer e o beber, são causas de prazeres intensos, renováveis e, sobretudo, resistentes à decepção. Em contrapartida, muitos bens duráveis, como, por exemplo, aquecimento automático, automóvel e refrigerador não são resistentes à decepção por ocasionarem prazeres somente no momento da aquisição ou do primeiro uso. Outras decepções são evidentes, devido a expectativas não superadas: saúde, educação, lazeres, política, a própria profissão, etc.

sábado, 30 de outubro de 2010

Felicidade, é possível?

(Cap. III do trabalho de conclusão do curso de Filosofia - Crítica ao conceito de felicidade do homem contemporâneo) parte - 1/3


Autonomia da Razão x Conquista da Felicidade


A felicidade na contemporaneidade caminha na diversidade de meios, na busca e posse de bens temporais e passageiros, caracterizando o homem pelo consumismo, materialismo, imediatismo, hedonismo, utilitarismo e egoísmo. O homem de hoje, em sua busca pela felicidade, distancia-se cada vez mais daquilo que Aristóteles e Sto. Agostinho ensinaram a respeito. Os dois grandes pensadores da Filosofia Clássica já não exercem tanta influência sobre o homem de hoje, que eleva a altos patamares a corporeidade, a exterioridade e a artificialidade em suas relações com a realidade. Isso ocasiona toda uma crise de identidade consigo mesmo, com o mundo e com a verdade. Tal diversidade reflete uma falta de conhecimento do que seja a verdadeira e plena felicidade.
Os resultados do processo histórico da modernidade influenciam o homem de hoje diretamente, não só na concepção de felicidade, mas também na ideia de Deus e de mundo. Galileu, Francis Bacon e Descartes são considerados os pais do Projeto Moderno. Eles, segundo o filósofo Franklin Leopoldo e Silva, “propuseram meios racionais de emancipação do homem em relação às forças da natureza e aos dogmas estabelecidos por instâncias de autoridade alheias ao domínio da pura razão”. Com postura de recusa ao dogma da criação decaída e a sujeição do mundo visível aos mandamentos do invisível, os modernos inventaram a “religião do progresso, a ideia de uma marcha indefinida rumo à felicidade a efetuar-se através do domínio técnico do mundo”. As maravilhas do mundo vindouro, agora, são prometidas nesta terra à inteligência e à ação inventiva do homem.
Franklin Leopoldo e Silva, por meio do texto intitulado de Conhecimento e Razão Instrumental, quer considerar as contradições presentes no desenvolvimento da Revolução Iluminista. Ele continua dizendo: conhecer emancipa porque o conhecimento traz consigo o domínio da realidade. Da submissão ao senhorio sobre a natureza é, pois a trajetória que caracteriza a passagem do arcaico ao moderno, do primado do mundo exterior à primazia de um sujeito livre que se situa perante o mundo na posição de um juiz que é ao mesmo tempo um senhor. As duas atribuições vinculam-se ao saber cujo único instrumento é a razão. Afirma-se assim um poder indefinido de exploração intelectual da realidade que tem como consequência necessária o domínio técnico da natureza.

É neste contexto que o homem hodierno se encontra: conquistas tecnológicas derivadas do progresso da ciência, que é caracterizada por essa dominação do engenho humano sobre a natureza. O Projeto Moderno é fazer com que o ser humano passe da submissão ao senhorio da realidade. Poder e conhecimento são sinônimos. O que os homens deveriam aprender da natureza agora é como empregá-la, como usá-la. Desse modo, portanto, a finalidade proposta pela chamada Revolução Científica era também a de coadunar todo esse progresso científico com a felicidade. Ou seja, por detrás desse pensamento, havia o pressuposto de que o conhecimento colocado dessa forma de domínio da natureza resultaria num estado de felicidade para todos. Na análise de Eduardo Giannetti, “o grande divisor de águas no tocante à evolução da noção de progresso civilizatório e do seu impacto sobre a felicidade humana foi o iluminismo europeu do século XVIII – ‘a era da razão’ baseada na fé sobre o poder da própria razão”.
Entre os séculos XVII e XX, nota-se um grande crescimento tecnológico devido a este feliz casamento entre o saber e a técnica. Os benefícios trazidos por este processo civilizatório são tangíveis e passíveis de mensuração. Em termos de longevidade, constata-se um conjunto expressivo de indicadores biomédicos, sociais e econômicos. Grandes ganhos objetivos também no campo da saúde, escolarização, acesso a bens de consumo e tantos outros feitos derivados do progresso científico e do aumento da produtividade. Mas no tocante à felicidade, quais têm sido os efeitos de todo esse progresso? O anseio do ser humano, após essa virada iluminista, pôde concretizar seu sonho de felicidade e, em outros termos, tudo isso trouxe a sua realização?
O objetivo era a melhoria da vida humana por meio da razão. Logo, o conhecimento atrelado ao domínio da natureza tem como fim a própria razão. Ou seja, esse conhecer para dominar passa a dominar o próprio homem porque o homem é também parte da natureza. Reduzir tudo à razão faz com que tudo seja tratado como coisa. Tudo passa a ser medido, mensurado por um único método e o que não se enquadra a essa exigência é considerado inexistente, por carecer de fatos empíricos que o comprovem. Eduardo Giannetti afirma que o “erro capital do projeto iluminista foi dar uma ênfase desmesurada à transformação e à conquista do mundo objetivo em detrimento de uma atenção maior à questão dos desejos e ao lado contemplativo da realização humana”. Ou seja, apenas parte da realidade foi considerada. O homem avançou por um lado, mas, subjetivamente, ficou estagnado, esquecido e agora entristecido.
É fato historicamente comprovado que os avanços científicos, que permitiram ao homem descobrir a energia atômica, paralelamente, também permitiram a descoberta de bombas que resultariam na morte de milhares de pessoas. Portanto, a ideia de progresso mostrou a inviabilidade de se combinar o avanço científico com o aprimoramento da vida. É, sim, uma faca de dois gumes e a felicidade ainda permaneceu como os “amanhãs que cantam”.



quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Quando os dias demoravam a passar...

Lembro-me de quando eu era criança. Os dias demoravam a passar. As pipas, o jogo de futebol na rua ou no quintal do prédio, o pique-esconde e o “mega-drive” na casa dos amigos... Eram dias assim e esses eram meus maiores compromissos. O pai e a mãe, mesmo com a dura realidade de ter que conciliar trabalho e família, estavam sempre ali, mesmo quando estavam dormindo ou chateados e cansados. Era bom tê-los os dois ao mesmo tempo em casa. Isso era um pouco difícil, mas acontecia e desses dias dificilmente me esquecerei.
Como muitas crianças, eu não cresci tendo tudo o que quisesse. Lembro-me de que desde cedo comecei a aprender a ter que separar desejo de direitos. Não tive um pai e uma mãe que sempre fizessem os meus gostos, e por isso, hoje eu os agradeço. Mas, quando criança, não sabia muito bem como entender o “não”. Hoje, já um pouco mais velho (mas nem tanto!), ainda continuo lutando para não fazer dos desejos que tenho um direito. É uma linha tênue, um caminho estreito, reconheço. Entendo assim a vida: nem tudo posso ter, fazer e viver! Nem mesmo meus próprios sentimentos consigo controlar. Ora me sinto de um jeito, ora de outro e acabo concluindo que até do meu corpo, de vez em quando, levo uns “esbarrões”! Essa é uma experiência verdadeiramente humana, onde preciso reconhecer que não posso dominar aquele que precisa ser reconhecido por mim apenas como um amigo. Diminuir a velocidade sobre mim mesmo, sobre o que acho que sou ou deveria ser, sobre o que deveria estar sentindo e não consigo sentir em determinados momentos, sobre o que deveria estar fazendo e não consigo fazer ou talvez não seja capaz de fazer mesmo, pode ser a causa de dias mais tranquilos.



Na época das pipas, do futebol, do vídeo game (não posso esquecer do bafo: é tentar virar figurinhas com o impacto da mão!) , eu desejava ardentemente por esse dia aqui. Por quando eu estivesse com essa idade que estou hoje, já adulto, com essa independência na vida etc. E hoje, estou aqui e, apesar de tudo, vou bem, obrigado. Mas confesso: aquela época me dá saudades principalmente por uma coisa. Eu não tinha pressa. Eu não tinha preocupações. Não me preocupava se eu ia acertar na vida ou errar. O sentido de derrota era outro. Era apenas perder uma partida, perder uma pipa, perder figurinhas etc. Os dias passaram, eu cresci e essas lembranças só farão o bem que podem se eu deixá-las serem apenas lembranças. A vida tem suas exigências e quero sempre me permitir, ao menos, o desejo por dias menos acelerados, menos exigentes. Acho que deixar de desejar isso é impossível e acho que isso é um dilema. O desejo mais uma vez se contrapõe ao direito. Não considero que isso seja imaturidade ou medo de enfrentar desafios. Pelo contrário. Voltar ao tempo em que as derrotas não tinham o peso que hoje têm é poder ter o direito de viver na demora de um dia que não se mostra com pressa de findar. Isso pode não acontecer. Mas eu não quero deixar de me lembrar desses dias. Faz parte de mim, pois a vida não é somente feita de exigências, de responsabilidades a serem cumpridas. Ainda existem pipas, futebol, figurinhas, mesmo que seja somente nas lembranças.  

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O direito de ter medo



Na vida, quem ousará dizer que possui toda a certeza sobre o que se faz? Quem ousará dizer que não sente medo ao decidir-se por algo, sabendo que uma renúncia será inevitável? Quem ainda ousará dizer que não sente saudades de algo ou de alguém e ainda pensa na possibilidade das coisas terem sido diferentes de como são? Eis o nosso lugar! Temos mais consciência do que devíamos ter! Esbarramos em nossos limites, que são, na verdade, sinais de alerta que indicam o caminho rumo à nossa verdade.
Nos últimos séculos, nós, seres humanos, progredimos em teorias, ideias, tecnologia etc. Iniciamos uma nova visão de mundo e nos colocamos no centro das atenções com aclamações do tipo: "Eu tenho respostas pra tudo, escutem-me!". Mas, sinto muito. Podemos até ter respostas pra tudo mesmo. Mas, não raro, as nossas palavras não justificam o que mostramos com a vida. Há momentos em que o silêncio pede lugar. Há momentos em que parar, refletir e esperar seriam as melhores atitudes a serem tomadas. Desconsideramos nossa condição de criaturas, de incompletos, carentes. Então, o que vale é esquecer essa nossa verdade e nos lançarmos no frenesi das danças, das músicas, das cores. Este é o lugar da superficialidade, cativeiro de quem vive pela metade.
A experiência dos limites nos rouba as possibilidades. Feliz de quem desembarca neste porto! Experimentar nossos próprios limites é como recuperar o que de fato somos. Chegar ao que se é, na verdade, é chegar ao início, à origem. É tocar em Deus. É ver que o esforço da luta, apesar das certezas parceladas e das incompreensões, tem uma razão que a própria razão desconhece. Acreditar em Deus, mesmo considerando que isso é a maior ousadia, por não dispormos de dados empíricos, não deixa de ser uma grande aventura rumo ao desconhecido. Uma aventura que todos nós, homens, merecemos viver porque as melhores coisas que existem são as coisas misteriosas. O mais bonito é saber que o mistério só é mistério quando não é revelado, descoberto. Quer se queira ou não, o fato de vivermos, de existirmos, já nos garante essa doce realidade dos mistérios. Nós precisamos dessa aventura! Por que, então, haveria perguntas? Qual a razão que nós teríamos para receber em nosso território a presença do medo que vem atrelado à ausência de respostas? 
Temos o direito de ter medo. Isso nos humaniza e nos faz tocar com mais força o chão em que pisamos. Que nada nos prive dessa graça. E, diante da ausência de respostas, que o silêncio seja o maestro, pois nem tudo nós saberemos!